04 dezembro, 2007

Manzuá no braço, futebol no pé e câmera na mão:

Perfil de Sidnéia Lusia

--- O sorriso e a força de uma rara mulher ---

por Deise Pequeno

Olê, mulher rendeira, olê mulher rendá...tu me ensina a fazer renda, que eu te ensino a namorar...Que renda que nada, Sidnéia quis mesmo foi aprender a pescar, a jogar futebol e a subir em coqueiro. Filha de pescador, sempre pedia ao pai para levá-la em suas pescarias. Um dia, ele cedeu, já que a criança, decidida, iria ao mar com ou sem sua bênção. Na sua primeira saída, a “água escura”, reflexo do céu, assustou e maravilhou a menina Sidnéia. “Como se fosse a noite dentro do mar”, lembra ela.


No coração de Sidnéia existem duas grandes paixões, o futebol e a pescaria. No meio delas, o mar, onde a menina aprendeu ambas as atividades. “Desde pequena eu ia tomar banho de mar e via os moleques jogando na beira da praia, na maré seca. Aí eu comecei a me interessar. Comecei a treinar com eles, mas eles não queriam deixar porque eu sou mulher. Sofri muito com isso. Eu ficava sempre de escanteio.”


O preconceito começou a fazer parte do cotidiano de Sidnéia, que escolheu a difícil estrada de ser pescadora e jogadora de futebol na pequena comunidade da Praia da Redonda. “Todo mundo me confundia com menino quando eu era criança”. E o julgamento alheio fez a menina chorar, muitas vezes, no colo da mãe, sem entender a causa de tanto estranhamento. Com 10 anos, Sidnéia já pescava “de apnéia”, só prendendo a respiração e pegando lagosta a cerca de quatro metros de profundidade no mar. Com a pesca, a menina ia comprando além de biscoitos, coisas para seu próprio quarto, como sua porta e seu guarda-roupas.


Um dia, aos 16 anos, Sidnéia recebeu um convite para vir a Fortaleza, fazer uma das coisas que mais sonhava, jogar bola em um clube. E ela veio. Deixou Redonda pela AABB e virou titular do time feminino de futebol de salão. Mas a jovem sentiu falta de sua praia, da pescaria e da família, e depois de um ano na cidade grande voltou para seu velho porto conhecido. Depois de voltar da experiência no clube, Sidnéia decidiu agora pescar com um objetivo: morar sozinha na sua própria casa. E botou a mão na massa. Sem dinheiro para contratar uma equipe de construção, chamou um pedreiro e trabalhou fazendo cimento, argamassa, colocando portas e janelas e pintando sua própria casa. Aos 21 anos, a moça pescadora tinha sua casa pronta. Hoje, Sidnéia Lusia diz com orgulho que conhece cada pedacinho de sua casa, porque foi ela mesma quem a fez. E o lugar reflete sim a personalidade da pescadora. Casa firme, com jeito de mar e aberta a amigos. Igualzinho a ela.


História que daria um filme. “Um filme não, um curta”, diz Sidnéia, sorrindo, porque foi isso mesmo que ela fez. Incentivada por uma grande amiga, Maninha Morais, Sidnéia enviou ao concurso “Revelando os Brasis” a estória de sua vida, e foi escolhida para ir ao Rio de Janeiro ter aulas de produção de vídeo. A pescadora realizou seu sonho de voar de avião e bater foto de braços abertos, dizendo “Obrigada meu Deus!”. E fazendo algo que faz parte de seu cotidiano, ganhou “os cinqüenta reais mais fáceis” de sua vida. Subindo em coqueiro na praia de Copacabana.


Sidnéia voltou à sua comunidade e filmou seu documentário, “Uma pescadora rara no litoral do Ceará”. Ganhou prêmios e mais viagens, conheceu “gente famosa” e retornou à Redonda. “Quero morrer aqui, como peixe”, diz a moça. Lá em sua praia, até o tempo passa diferente, movido a balanço de jangada. Tem o tempo da lagosta, do camarão e do peixe, tem a hora de procurar outra coisa da qual viver. Na época do defeso da lagosta, entre janeiro e março, os homens do mar ficam sujeitos apenas à pesca do peixe, onde o quilo do pescado chega a ser dez vezes mais barato do que o produto anterior. Sidnéia, mulher inteligente, decidiu não sobreviver só de biquaras, bonitos e pargos. Veio para Fortaleza e fez curso de massoterapia. Durante o defeso, as massagens lhe garantem “uma graninha extra”, bem como o serviço de guia turística nas praias da região de Icapuí. Agora, ela sonha em comprar uma moto e fazer faculdade. Sidnéia simplesmente não consegue ficar parada.


(...esse texto era para ter saído na revista do Laboratório de Jornalismo Impresso, mas enfim...)

10 setembro, 2007

diálogo


-mãe, tô saindo.
- pra onde?
- reitoria.
- tem dinheiro?
- vou a pé.
- tá de celular?
- aham.
- isso é sim ou não?
- é sim.
- tá carregado?
- aham.
- almoça em casa?
- eu acho.
- esse vestido não é curto?
- eu não acho.
- chegou que horas ontem?
- tarde.
- tem chave?
- no bolso.
- mas o vestido não tem bolso...
- vou de mochila.
- já comeu?
- aham.
- de novo isso? eu já esqueci, neguinha, esse negócio de "aham" é de sim ou de não, pelamordideus?
- é de sim, mãe. eu volto pro almoço, ave! dexa eu ir que eu tou atrasada.
- ah bom. que deus te proteja, te guarde, te guie e ilumine teus caminhos. tenha um bom dia, minha filha.

16 agosto, 2007

Quebre uma unha

Issaqui é uma revista fictícia que a gente huahauhaua pretende lançar algum dia!

"Ai, eu morreria de alegria se a minha cartinha fosse publicada nessa revista tudibom que eh a MaisMulher. Eu queria um conselho, tá? É moda roupitchas com estampinhas de animal? Um dia ROSA pra vocês, tá?

bombom."


Querida Bombom, respondendo à sua cartinha:

Linda, quer um conselho? Mate um tigre à unha, mas não use essas estampinhas falsas de pele de bicho caro que nunca nessa vida você poderia ter comprado! Claro, que se quebrar essa unha aí na horinha de matar o tigre, todo seu esforço de beleza acabou de ir pelo ralo, ops, pela serrinha. Mais três semanas deixando crescer, sei como é isso. Haja paciência. Mesmo assim, que coisa mais brega, essa de deixar só uma unha crescendo, de preferência enrolada num bandeide cor de pele, pra dizer que foi “acidente, ai, tô machucada”. Eta coisa de mulher de periferia pobre! Corte todas as unhas e diga para as amigas que está aprendendo violão! Elas vão ficar musgo de inveja!

Mas se acontecer de dar aquele chilique de cafonice e você cair na tentação de ter um biquíni com pele de bichinho, cabeça pra cima, não é o fim do mundo, linda! Se alguém disser que o seu biquini estampadinho é falso, negue negue negue!

Mas quebre uma unha.

É ver-da-dei-ro, você matou o jacaré naquele safári à África, lembra? Foi assim que você ganhou esse bandeide brega no indicador! E depois, vá aprender violão.

Abraço mulher, beijinho de bochecha não encostada para não borrar o batom!

A Editora.

08 agosto, 2007

Um sonho comum esquisito

Pela primeira vez, eu sonhei um sonho inteiro. Daqueles de começo, meio e fim que te fazem pensar que foi um livro, um filme, uma estória que você escutou ou uma música que passou correndo num carro de som. Durante a noite de cidade movimentada, eu nem sempre sei quando é sono e quando é acordado, fico mesmo perdida em algum lugar pelo meio de tantas horas reviradas no colchão.

Estavam chegando numa casa e se acomodando depois de uma viagem longa. Batiam os lençóis brancos, com cheiro de goma, que refletiam a luz do sol que entrava pela janela. O vão da porta da sala era arqueada, e as paredes, caiadas, eram grosseiras e alvas como os lençóis. O chão era de barro vermelho e madeira. Eram a mãe, um menino e uma menina. O garoto tinha saudades extremas do pai, mas não sabia onde ele estava. Era o tempo da guerra, época em que as pessoas sumiam e nem mesmo diziam tchau, antes de desaparecer. O pai não tinha dito tchau.

São oito e meia da manhã, e muito do que eu sonhei já parece desaparecer. Eu lembro da roupa do menino, calção preto, curto, calça branca e suspensórios. As mulheres eram de vestido, embora eu não lembre mais da cor nem cumprimento. Mas eu lembro que o menino brincava com o pai, dizia “papai está aqui” e logo depois levava um safanão da irmã mais velha, e ninguém acreditava nele. Um dia, o garoto resolveu contar para a mãe e a irmã que o seu pai estava explicando onde estava. Que mesmo no meio da guerra, eles ainda podiam se encontrar de novo, se a família o procurasse.

“Sabe aquela fotografia de família, que vocês tiraram há alguns dias? Pega ela, menino, e mostra para as mulheres que eu ainda estou aqui”, disse o pai. E, de fato, a foto em preto e branco impressa no papel grosseiro não deixava dúvidas, havia mais uma pessoa nela. Na janela à esquerda da foto, o rosto do pai agora aparecia. E as mulheres começaram a escutar o menino. E seguiram, seguiram, passaram por hospitais e bases e vilas até encontrar o corpo do pai. Vivo, mas extremamente debilitado. Depois do reencontro, mãe e filhos se reuniram em frente a uma grande janela ensolarada do hospital. E olharam a fotografia, mais uma vez. O rosto havia sumido. Com a família reunida, as forças do pai se restabeleceriam melhor.

Eu lembro claramente a alegria do rosto das mulheres, o vestido rodado refletindo a luz, no momento em que elas perceberam a mudança na fotografia. Eu acho que lembro dos sorrisos, mas não consigo reconhecer quem eram a família, cada um dos personagens. Queria ter memória melhor, sabia?

Semanas depois, com o pai reabilitado, o menino contou o que aconteceu. E o pai explicou que hum, talvez não fosse ele o rosto da foto. E também nunca falara nada ao menino sobre como poderia ser encontrado. O pai do pai há muito muito tempo também tinha ido para a guerra e também não tinha dado tchau à mulher e aos filhos. Mas o pai do pai nunca mais voltou. E se parecia muito com o pai.

Tudo o que eu me lembro, depois disso, foi o pai já completamente estabelecido, andando por uma trilha de grama com o filho nos ombros, e, ao lado dele, uma outra parelhamas translúcida: o pai do pai e um garotinho nos ombros dele. Acordei meio sem entender o sonho-estória-completa, bem a tempo de perceber meu ventilador com cheiro de queimado.

Bom dia pra todo mundo!

16 julho, 2007

rosa com branco

Foi naquela noite em que as fábulas viraram realidade. Nunca tinha visto tanto, tanto brilho, tantas saias rodadas, tanta perfeição deslizando no mesmo espaço. Pequena, ela era da altura de cinco palmos do seu pai – ela sabia, sempre pedia pra ele lhe tirar a altura e ver quanto ainda faltava para ser mocinha. Seus olhos ficavam na exata altura certa do deslumbramento.

De repente, o olhar brilhante congelou. Ela encontrou bem aquilo que procurava. Disparou, antes erguendo o vestidinho rosado, e se esgueirou por trás de uma palmeira, de outra e de mais outra. Tentou, com as mãos de luvinhas de renda, esconder aquele sorriso de contentamento que só crianças pequenas sabem mostrar. Até parece que elas têm duas curvinhas a mais no sorriso.

E voltou saltitante para onde estava, mas agora procurava outra coisa. Depois de uns pulos rosa com branco, conseguiu chamar a atenção da mãe, antes perdida entre canapés e amigos ilustres. De mão materna na sua, a pequena correu novamente para o que lhe chamara atenção, arrastando a mãe no passinho miúdo marcante de uma urgência infantil.

Ela tá ali, olha! Viu como não era mentira? – disse a pequena. E de repente, me puxa a barra do vestido. Sem vergonha, sem dúvida, ela olha para mim, porque uma coisa que ela tinha consigo, sim, era aquela certeza. Me viro e ouço com atenção.

“Moça, você é uma fada, não é?”

Naquela noite, eu fui uma fada.

22 junho, 2007

Calypso

Era um barco de cores navegantes, daqueles que a gente sente o balanço sem mesmo olhar. E feito da mais pura madeira da terrinha. Martelado cuidadosamente seguindo o ritmar das ondas. O Calypso não media mais de oito metros, mas na mão do João do Galo era tão imponente, poderoso. Pesado. O Calypso saía pro mar só de vez em quando, preguiçoso e dormente, nos dias que o João decidia que, afinal, era de pesca. Nas outras ocasiões, ficava mesmo na areia da praia, ali meio afundado e enterrado, trocado pelo carrinho de vender salgados do João.

Bem num desses dias de camadas e camadas de areia fina trazidas pelo vento sobre o casco, o Calypso recebeu uma visita enquanto o do Galo não olhava. De cara e pele que pareciam derreter sobre os próprios ossos, o velho subiu a bordo do barco, olhou em volta e encarapitou-se caixa acima, num canto de parede. Ofegante, mas não menos atento. Tirou fumo e papelote do bolso, cortou, enrolou e lambeu. Acendeu e puxou, soltando a fumaça no compasso negativo típico da idade. E ficou lá no alto, que nem papagaio, acocado nas próprias pernas, pensando cada trago.

Mas os olhos dele não paravam, mais vivos que o velho, observando cada detalhe do barco. Fitava as ranhuras da madeira e os restos de palha, de cordas e de peixes espalhados pelo chão, enquanto as unhas faziam um barulho fino, incômodo, enquanto percorriam a pintura gasta das paredes. Todos constatavam a força e o equilíbrio daquele Calypso, construído por mão certeira como aquela do João.

Já era noite quando aquele conjunto de peles pendentes - o velho - resolveu se mexer. Esticou o pescoço. Levantou. Entre os dentes esparsos que lhe sobravam, debulhou uma reza, meio grunhido, um som de cadência parecida e ao mesmo tempo contrária ao cair das ondas. E se calou novamente, porque já aquele mesmo olho congelava a visão da primeira estrela a dar adeus aos dia.

Na outra manhã o João acordou com uma coceira na mente, um futricar de idéias que não conseguia entender. E uma vontade de fumar danada. Esquisito. Inquieto. Veio o repente. Era preciso vender o Calypso. Sim, era preciso. Porque agora era um enojar largo que tinha pelo barco. E mandou ao diabo cada hora gasta no construir da embarcação, cada grama de força retirada de suas entranhas e gastas no arrastar do barco da areia para o mar e do mar para a areia.

Se desfez do barco.
Queria nem saber, nunca mais, de construir barco algum.
Ia viver agora só de vender salgado, o João.

20 maio, 2007

Nhanhau

Ela morava nas longíquas terras do Mondubim. Ele, Geraldo, no Castelo Encantado. Se existisse uma reta entre os dois e ele tivesse uma daquelas motocas da moda, ia rápido, cerca de quarenta minutos e pronto, caminho feito. Mas não, Deus com aquela risada larga dos velhos, fez um traçado que não era nem reto e nem rápido. E não deu ao rapaz uma moto.

Quase quatro horas por dia, depois de três ônibus e uma condução extra, o rapaz enamorado conseguia chegar à casa de Elivania, a auto- proclamada namorada. Faltava-lhe coragem, parecia que a moça não lhe dava brechas, entre tantos beijos, para discutir quem é que disse que estavam namorando. “Ah, que importa. Ela me agarrando assim ela pode ser o que quiser”, pensava o rapaz, entre uma tomada de fôlego e outro beijo. Antes se encontravam na faculdade, lá longe, debaixo das mangueiras, onde parecia que o sol caía mais rápido tentando esconder tanto ardor juvenil.

Segunda-feira. De namoro quase acertado, tinha ele que conhecer a família da moça, namorar de cadeirinha como manda o bom costume. E lá ia ele, de ônibus, depois da aula, para a casa de Elivania. “Mora com o avô e seus gatos, para cuidar do bem-estar do velhinho? Que menina doce, minha Elivania”, e não pensou duas vezes em ir ter com o velho, que sem objeção alguma aceitou o namoro da neta. Só tinha um acordo: namorar no sofá da sala para não virar comentário de vizinha-fofoqueira-de-periferia. Geraldo até ajudou o velhinho a chegar na frente da casa, onde ficava todas as noites, vendo e comentando e rangendo entre dentes que nem cadeira velha comentários sobre quem passava-fazia-o-quê pela rua.

Cadeira fora, agora era hora de Geraldo e Elivania terem a sala só deles, melhor que encostado em mangueira na faculdade. E o sofá chorava baixinho, a cada vai-e-volta dos beijos do casal. De repente, nhau! “Que é isso, Elivania? Esse gato tá doido, é?” “Liga não, Gê, ele é só ciumento de mim. Me quer bem demais. Olha, Gê, esse é o Nhanhau. Nhanhau, esse é o Gê”. E gato posto no chão, Geraldo tentou esquecer o arranhão na perna, quase minando sangue. Puxou Elivânia para junto de si, novamente. E começou de beijo profundo, daqueles que botam arrepio até detrás da orelha. E “nhau!” Foi Nhanhau denovo, que pulou nele cravando todas as suas brancas garrinhas minúsculas na calça jeans surrada. “Te aquieta, Nhanhau. Eta gato sem-vergonha”, gritou o velho de voz forte lá da varanda. Era velho, mas o grito fazia o gato parar. E Geraldo parou também, perdeu o fogo, enfiou uma conversa qualquer e desistiu de agarrar Elivania daquele jeito que ele bem gostava, só por aquela noite. “Amanhã eu continuo, deixe estar, bichano,deixe estar”, dizia consigo o rapaz.

Mas foi assim quase a semana inteira. Geraldo agarrava Elivania, o gato pulava em Geraldo, o velho gritava com o gato. “Te aquieta, Nhanhau! Eta gato sem-vergonha!” Quase já sem saber o que fazer, mas resolvido a achar um meio de disfarçar a atenção do gato, Geraldo convenceu-se de que o problema era outro. O sofá. Sempre que as coisas começavam a ficar boas com Elivania, o sofá rangia. Então a resposta era ficar quietinho. E de pontinha de sorriso maroto, o rapaz resolveu passar a mão, lentamente, nos seios da namorada. “Sem barulho, ué. Quero ver esse gato vir agora”, sorriu ele.

Não deu jeito. Mais histérico do que nunca, Nhanhau pulou no pescoço de Geraldo, era unhada, miado, pêlo e gato por todo lado. Até parecia que o gato entendia tudo. E mais uma vez, o velho gritou, lá da varanda, “Te aquieta, Nhanhau! Eta gato sem-vergonha!”. Geraldo, que nem abraço, nem beijo, nem mão nos peitos da namorada conseguia, já de saco cheio daquele gato, não sabia o que fazer. E Elivania nem ligava, botava o gato da discórdia no colo e tentava fazer as pazes entre o bichano e o namorado. E por aí todo agarramento acabava do mesmo jeito, ele arranhado, ela de gato no colo.

Sexta-feira. Geraldo já tinha tanto arranhão que se achava competidor com o Cristo na cruz. De cadeiras na varanda para o velho, sofá liberado na sala e namorada cheirosa esperando, começou o mesmo ritual de sempre. Geraldo agarrava a moça, o gato pulava nele e o velho gritava de longe. “Eta rotina desgraçada, meu deus, agüento mais não.” E resolveu acabar o namoro, que nem ao menos chegou a discutir com Elivania se realmente existia. E saiu caminhando, a menina em lágrimas, deixada na soleira da porta. Resoluto, nem ao menos olhou para trás.

Ouviu um miado na escuridão da periferia. Era Nhanhau, que lhe acompanhava o passo. “Mas não é que este filho de uma puta tá me acompanhando, pra ter certeza de que vou embora?” Geraldo não pensou duas vezes. Pegou o gato pelo pescoço e colocou-o debaixo do braço. Três ônibus e uma condução, até a faculdade, e depois mais outro ônibus só para garantir que ia se livrar do Nhanhau. E soltou o bichano pela janela de algum canto que não fez nem questão de saber por onde foi. Enquanto isso, Elivania ainda se derretia em lagrimas no mesmo sofá de antes. O avô, de voz grossa, entrou puxando a velha cadeira de balanço de volta para a sala. E afagou os cabelos dela, enterrados no sofá. “Elivania, minha filha, se ajeite, o sem-vergonha foi embora”, balbuciou o velho, de olho brilhante.

(FOTO: Henrique Kardozo)

26 março, 2007

Brave New Home

To an International Student, life outside home sometimes it's harder than we think. But for me, I really believed that it wouldn' be that hard, because I always liked American music, food and had studied English since I was a little girl. Even though I had never lived out of home before, I used to see myself almost as an expert on "american way of life". But it happened that I was going to live with foreigner students from cultures I had never heard before - so, guess I might be a great source for funny stories and not-do-like-her cases.

As soon as I arrived in Athens, I went to my new apartment, which would be shared with more three other girls. I knew in advance that they weren’t Americans, but in average they were living at US for at least two years.

So I opened my apartment’s door, ran inside curiously toward my new room and started cleaning the whole place up, trying to beat on my own loneliness with my affection for neatness.

After a whole afternoon of hard work, I decided I would cook something to eat. I turned on the stove and started to stare at it, waiting for the flames to burst out. I just noticed those four round iron things in the top of it getting redder and redder, and no flames, but a white fog and a strong smell of something burning really hard. Suddenly a Chinese girl came out from one of the locked bedrooms and started screaming at me:
- A-ree you trrrying toh killah us??
I got so freaked out with her words that I really started thinking that I did something very, very wrong. Okay, I did, I didn’t know it was an electric oven, and the flames would NEVER burst out. And probably there was a big probability that I would have cause a fire there, but WHY she didn’t show up before? I had cleaned the whole apartment, all by myself, believing I was completely alone there!

And she kept on talking and talking and talking and I couldn’t understand a single full sentence from her. I started thinking that my English was so much below than I expected that I couldn’t understand a simple roommate, who probably knew I was in America for less than a couple of hours.

After that, I still had a WHOLE week with only her at the apartment, for the other girls had written us saying they’ d arrive a little later at the move-in date that year.
I swear, I really started to believe that I could never speak English and I was such a slow learner that I would never communicate myself properly with anyone during those six months to come.

Then, one day still at that very first week she tried to teach me how to use the washing and drying machine. I was just like this: “Fist, you putee yourr clooz hear and hear” and so on…Gosh…all I could do was cry and complain to my exchange mates, who were still waiting to meet their own roommates. And, what, I'm no proud of me every day, but if I myself couldn’t understand someone, well, let’s say my English wasn’t that bad, so my friends really started worrying for themselves.

A week later Sonya and Claudia arrived at the apartment. The first was Indian, and the second one, Romenian, but both with a beautiful English, with a little accent, perhaps, but perfect to be understood. And I found out that the problem wasn’t me, but her, the Chinese girl. And the three of us had a great time that fall making fun of her, mocking that “huh?” when she didn’t understand us. I know this may sound a little mean from us, but we couldn’t help it, for god’s sake, she was there for more than two years! Yeah... and I thought I was the International kid around there!

HUH??

21 março, 2007

Retalhos

São simplesmente momentos. Pedaços de tempo que, se costurados, pode ser que façam um dia, ou dois, ou três, quem sabe. Um sorriso, uma porta de elevador segurada quando se está no cúmulo do atraso, um toque de leve nas costas da mão. Tudo são realmente pequenos instantes em que os homens percebem - grande novidade - que não estão sós.

E a vida vai seguindo, feita em retalhos diários de sentimentos , onde até a mais dolorida das solitudes pode ser esquecida por um olhar cruzado por cima de uma tela de computador. E o vazio da sala diminuído a partir de um rabo de olho. E as coisas cansativas, complexas, costumeiras, se transformam em simples, de textura adocicada. E aqueles, esses dias, feitos de pequenos momentos de humanidade, vão se tornando mais constantes e presentes. Até que não precisem mais de linha, agulha ou mão hábil de costureira. Já vem prontos, colados, grudados, sem pause, stop, qualquer comando que os explique em realidade.

Agora, são dias.


(esse foi pra ti, Georgia.)

15 março, 2007

Bom dia!

- Droga de nascer do sol. Ele já nasce todo dia, ué, não sei pra quê tanto alvoroço... - resmungava a menina, enrolada numa toalha barata azul. Fodam-se as risadas amigas, as músicas cantadas em conjunto, as confissões tímidas arrancadas à penumbra de fogueira e todo e qualquer estereótipo que componha um luau. Aliás, foda-se também aquele mesmo fogo, aceso pela primeira vez em tantas visitas à praia graças ao combustível portátil - líquido de isqueiro - e à madeira, dita em voz baixa, roubada de uma construção vizinha. Pss, roubada não, que é feio. Pegue para fins de benefícios maiores para uma determinada população, ou seja, eles.

A praia, que fora sua por quase toda a noite, era o último lugar onde ela queria estar. Desejava, além de sua cama e um banho urgente, uma dor de barriga súbita e incontível para o dono do carro, acompanhada de uma insaciável necessidade de ir para casa. Desejar o mal aos outros? Que nada...Nunca. Só por enquanto, hoje, na verdade.

Estar de carona tem isso. Fica-se à mercê do "não, só mais meia hora, vai", que se estenderá, provavelmente, ao "quando amanhecer a gente vai". Vontade grande de dormir debaixo de algum pneu, esquecer o estômago refinado, o fígado afeminado e o cabelo embaralhado. Ótimas companhias. O primeiro se recusa a chilito barato, o segundo detesta qualquer vinho com nome de santo - sim, o pecado foi ter bebido -, e o terceiro abomina a combinação vento-areia-falta de pente. Pequenos detalhes que foram esquecidos durante a noite e agora, somente agora, parecem importar.

E se sentou, em pose de seis anos de idade, de pernas estendidas na areia úmida daquela quase-manhã. Mãos nos joelhos segurando as pontas da cabaninha azul felpuda na qual se escondia. E tentou cochilar ali, fingindo que não, não estava lá. Já estava muito mais do que cheia de toda essa areia, daquele álcool e do seu próprio sono. Sorte que o namorado não veio, se livrando de ter que aguentar uma pessoa em tão deplorável estado. Não físico, nem moral, mas de humor. Toda a rabugice nela parecia antevir ao exato momento de nascer do sol.

Mais um "senta, só mais um pouco", outro "não vamos agora, pega outro copo, vai...", e ela quase não aguenta mais. Na verdade, já desistiu, nem ouve, insiste só de birra. E respira fundo. Um pensamento quase incontrolável de puxar o garoto sorridente que dirige e dizer-lhe alto no ouvido " isso lá é hora de gente decente estar acordada?", repetindo sua própria mãe. Mas não, permanece quieta, encurvada, murmurando mil rabugens. E vai, continua resmungando, embalada de azul, por minutos e minutos a fio. Até que de repente, pára. E falta a respiração. Primeiros raios. Muitos sorrisos. Imagina o que seria dela se justamente hoje o sol se esquecesse de subir?

Bom dia, todo mundo!

12 março, 2007

Estampa de azul e verde

Sete. Fatias de luz de persiana ofuscavam o olho. Doia, ate. E o tic..tic... insistente do despertador sobre a mesa fazia par com o passarinho chato la de fora, que cantava desesperadamente desde cedo naquela manha. Ambos trinavam as mesmas notas, sempre e sempre, com o objetivo unico de espantar o sono, sim, especialmente, dos facilmente insones. Inclinava o pescoco mais para tras, de vez em quando, observando a arvore recortada pelas frestas da janela. Ia e vinha, resistente ao vento frio, num quase balanco invejoso de coqueiro na praia.

Oito. Setenta e cinco sinais. Contava com a ponta do dedo, sem tocar. Da cabeca ao peito. E so na frente. E sentou, resumindo-se no canto da parede, encolhendo as pernas. Olhava agora para si. O cabelo, nunca e sempre baguncado, as unhas constantemente por fazer, o colar jogado no chao de carpete. Sabia, nessas horas, as preocupacoes desnecessarias sao quase sempre inevitaveis, mas refutadas com todas as melhores vontades de nao estragar o momento. Aquele instante entre o acordar e o sono.

Nove. O murmurio, de boca meio tampada a lencol estampado, lembrava que nao era invencao.
A ordem e a mao debaixo da coberta nao deixava duvidas. Esqueceria, em alguns momentos, o relogio, o passarinho, o cabelo, as unhas. Ate o colar, que seria provavelmente achado no proximo domingo de limpeza do quarto. So os sinais continuam, importados. Deita, que eh cedo.

01 março, 2007

pra que razao???

Sem nada para fazer, ele olhou o cigarro molhado. Droga, dia de chuva. E comecou a refletir, maos cruzadas nos joelhos, encostado num coqueiro.

Primeiro, Deus criou o sentido. A razao. "Pah - esta feito!" E saiu andando feliz da vida pelo espaco sideral. Depois sentiu aquele vaziozao ao redor dele, e decidiu comecar a criar tooooodas as milhoes de coisas que conhecemos ou nao, na busca de preencher aquele nada. Criou o Homem e o fez criar o inutil, o necessario e o desejado. Surgiram chicletes, cadeiras e maquinas de vender adesivo. E se apaixonou pela Sua Obra. Foi o primeiro caso de egocentrismo conhecido e, diga-se de passagem, autorizado.

Passado algum tempo, o vazio voltou. E dai que ele desistiu da razao que conhecia e foi surfar em alguma praia la perto de Canoa.

11 fevereiro, 2007

guardanapo amassado

Encontrei essa noite um guardanapo perdido, meio rasgado, amassado no cantinho da mochila. Claro, em bolsa de mulher tudo se encontra. Talvez dias, meses depois, mas encontra. A mesma regra vale pra quarto de crianca, carteira de marido e porta-mala de carro, eu acho.

Um pedacinho de papel, rabiscado num cafe "derrubado" que ficava no meio de uma esquina escura em Athens, descrita por amigos como "ah, la naquela area onde as pessoas meio alternativas, cabeca, se encontram pra discutir temas estranhos, tomam cafe depois da aula e usam all-star".

Era um meta-guardanapo, falando de si mesmo e de como sem querer da na gente aquela vontade inexplicavel de escrever. Como se fossemos explodir de dentro para fora.

"Falta papel? Serve nota fiscal, embrulho de bala, guardanapo como este. Qualquer superficie que tenha AQUELE espacinho em branco (colorido, pode ser), predestinado a ser escrito por voce. A ser somente seu, ou de tantos outros ao mesmo tempo. Pode ser riscado so com um 'volto logo', mas o rabiscado da um novo sentido ao papel, seja la qual for. Eh papel riscado de mensagem. Entao risque, pegue uma caneta velha e uma ponta de jornal. E arrisque-se na sua mensagem."