20 maio, 2007

Nhanhau

Ela morava nas longíquas terras do Mondubim. Ele, Geraldo, no Castelo Encantado. Se existisse uma reta entre os dois e ele tivesse uma daquelas motocas da moda, ia rápido, cerca de quarenta minutos e pronto, caminho feito. Mas não, Deus com aquela risada larga dos velhos, fez um traçado que não era nem reto e nem rápido. E não deu ao rapaz uma moto.

Quase quatro horas por dia, depois de três ônibus e uma condução extra, o rapaz enamorado conseguia chegar à casa de Elivania, a auto- proclamada namorada. Faltava-lhe coragem, parecia que a moça não lhe dava brechas, entre tantos beijos, para discutir quem é que disse que estavam namorando. “Ah, que importa. Ela me agarrando assim ela pode ser o que quiser”, pensava o rapaz, entre uma tomada de fôlego e outro beijo. Antes se encontravam na faculdade, lá longe, debaixo das mangueiras, onde parecia que o sol caía mais rápido tentando esconder tanto ardor juvenil.

Segunda-feira. De namoro quase acertado, tinha ele que conhecer a família da moça, namorar de cadeirinha como manda o bom costume. E lá ia ele, de ônibus, depois da aula, para a casa de Elivania. “Mora com o avô e seus gatos, para cuidar do bem-estar do velhinho? Que menina doce, minha Elivania”, e não pensou duas vezes em ir ter com o velho, que sem objeção alguma aceitou o namoro da neta. Só tinha um acordo: namorar no sofá da sala para não virar comentário de vizinha-fofoqueira-de-periferia. Geraldo até ajudou o velhinho a chegar na frente da casa, onde ficava todas as noites, vendo e comentando e rangendo entre dentes que nem cadeira velha comentários sobre quem passava-fazia-o-quê pela rua.

Cadeira fora, agora era hora de Geraldo e Elivania terem a sala só deles, melhor que encostado em mangueira na faculdade. E o sofá chorava baixinho, a cada vai-e-volta dos beijos do casal. De repente, nhau! “Que é isso, Elivania? Esse gato tá doido, é?” “Liga não, Gê, ele é só ciumento de mim. Me quer bem demais. Olha, Gê, esse é o Nhanhau. Nhanhau, esse é o Gê”. E gato posto no chão, Geraldo tentou esquecer o arranhão na perna, quase minando sangue. Puxou Elivânia para junto de si, novamente. E começou de beijo profundo, daqueles que botam arrepio até detrás da orelha. E “nhau!” Foi Nhanhau denovo, que pulou nele cravando todas as suas brancas garrinhas minúsculas na calça jeans surrada. “Te aquieta, Nhanhau. Eta gato sem-vergonha”, gritou o velho de voz forte lá da varanda. Era velho, mas o grito fazia o gato parar. E Geraldo parou também, perdeu o fogo, enfiou uma conversa qualquer e desistiu de agarrar Elivania daquele jeito que ele bem gostava, só por aquela noite. “Amanhã eu continuo, deixe estar, bichano,deixe estar”, dizia consigo o rapaz.

Mas foi assim quase a semana inteira. Geraldo agarrava Elivania, o gato pulava em Geraldo, o velho gritava com o gato. “Te aquieta, Nhanhau! Eta gato sem-vergonha!” Quase já sem saber o que fazer, mas resolvido a achar um meio de disfarçar a atenção do gato, Geraldo convenceu-se de que o problema era outro. O sofá. Sempre que as coisas começavam a ficar boas com Elivania, o sofá rangia. Então a resposta era ficar quietinho. E de pontinha de sorriso maroto, o rapaz resolveu passar a mão, lentamente, nos seios da namorada. “Sem barulho, ué. Quero ver esse gato vir agora”, sorriu ele.

Não deu jeito. Mais histérico do que nunca, Nhanhau pulou no pescoço de Geraldo, era unhada, miado, pêlo e gato por todo lado. Até parecia que o gato entendia tudo. E mais uma vez, o velho gritou, lá da varanda, “Te aquieta, Nhanhau! Eta gato sem-vergonha!”. Geraldo, que nem abraço, nem beijo, nem mão nos peitos da namorada conseguia, já de saco cheio daquele gato, não sabia o que fazer. E Elivania nem ligava, botava o gato da discórdia no colo e tentava fazer as pazes entre o bichano e o namorado. E por aí todo agarramento acabava do mesmo jeito, ele arranhado, ela de gato no colo.

Sexta-feira. Geraldo já tinha tanto arranhão que se achava competidor com o Cristo na cruz. De cadeiras na varanda para o velho, sofá liberado na sala e namorada cheirosa esperando, começou o mesmo ritual de sempre. Geraldo agarrava a moça, o gato pulava nele e o velho gritava de longe. “Eta rotina desgraçada, meu deus, agüento mais não.” E resolveu acabar o namoro, que nem ao menos chegou a discutir com Elivania se realmente existia. E saiu caminhando, a menina em lágrimas, deixada na soleira da porta. Resoluto, nem ao menos olhou para trás.

Ouviu um miado na escuridão da periferia. Era Nhanhau, que lhe acompanhava o passo. “Mas não é que este filho de uma puta tá me acompanhando, pra ter certeza de que vou embora?” Geraldo não pensou duas vezes. Pegou o gato pelo pescoço e colocou-o debaixo do braço. Três ônibus e uma condução, até a faculdade, e depois mais outro ônibus só para garantir que ia se livrar do Nhanhau. E soltou o bichano pela janela de algum canto que não fez nem questão de saber por onde foi. Enquanto isso, Elivania ainda se derretia em lagrimas no mesmo sofá de antes. O avô, de voz grossa, entrou puxando a velha cadeira de balanço de volta para a sala. E afagou os cabelos dela, enterrados no sofá. “Elivania, minha filha, se ajeite, o sem-vergonha foi embora”, balbuciou o velho, de olho brilhante.

(FOTO: Henrique Kardozo)